Quarta-feira, 28 de Fevereiro de 2007

2007 - ANO MIGUEL TORGA

COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA

LEIRIA, 28 DE FEVEREIRO DE 1940

UNHA NEGRA

                                                              Hoje,
                                                              Nem a vida me foge,
                                                              Nem eu fujo;
                                                              É não sei quê no sol 
                                                              Que está sujo.
                    MIGUEL TORGA, Diário I, Coimbra, 7ª ed., 1989, p. 132

 

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EÇA, RAMALHO E A INSTRUÇÃO

DA MEMÓRIA … JOSÉ LANÇA-COELHO

O ENSINO DA HISTÓRIA E DA ARITMÉTICA NO FINAL DO SÉC. XIX

 

            Uma das obras mais carismáticas do séc. XIX são As Farpas, escritas pela parceria Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. No entanto, quando Eça deixou o país para seguir a sua carreira diplomática, em Setembro-Outubro de 1872, Ramalho continuou sozinho este projecto durante 11 anos, produzindo 15 tomos, até ao final de 1882.

            Debrucemo-nos perante uma Farpa de Outubro de 1871, intitulada ‘Por onde se aprende a História, e por onde se aprende a Aritmética’, inserida no tomo VIII, integralmente dedicado por Ramalho à Pedagogia e, intitulado, Os Nossos Filhos: Instrução Pública.

            No respeitante à História, Ramalho refere que, invariavelmente, os compêndios desta disciplina referem que o primeiro rei de Portugal foi D. Afonso Henriques, indo daqui até ao reinado do Sr.D.Luis I, observando que estes manuais “eram imperfeitos pela razão de que se consagravam prolixamente às anedotas milagrentas da fundação da monarquia e aos casos biográficos e romanescos dos nossos antigos reis, deixando no escuro dos últimos planos, (…) os factos da história contemporânea, os quais (…) seria conveniente expor com perfeita exactidão e lucidez crítica, a fim de dar aos alunos a lição que mais os interessa: do estado social e político no seu tempo e na sua época.(Ramalho Ortigão, As Farpas, t.VIII, Clássica Ed., 1970, pp. 39-40)

            Atendendo aos parâmetros enunciados, o compêndio ideal seria o que desse maior ênfase à contemporaneidade dos alunos e tratasse pela ‘rama’ os acontecimentos mais distantes cronologicamente. Foi isto que fez “um professor ilustre”, de que Ramalho não nos diz o nome, mas que critica ironicamente, mostrando que a sua inovação não passa de uma imbecil mutação dos factos históricos no respeitante ao modo como são apresentados aos alunos, “(o compêndio) continha exactamente o mesmo que todos os compêndios feitos, com a diferença de que, dando a primazia à história contemporânea sobre os factos antigos, principiava assim:

Pergunta (P) –Quem foi (verdadeiramente) o primeiro rei de Portugal?

Resposta (R) – Sua Majestade o Sr. D. Luís I.

P – Quais foram os factos notáveis do reinado desse ilustre rei, e quem lhe sucedeu?

R – Sucedeu-lhe El-Rei D. Pedro V, ETC.

                E assim por diante até D. Afonso Henriques, ao qual, como mais remoto, fora consequentemente dado o derradeiro lugar neste portentoso livro.”(Id., id., p. 40)

            E depois da profunda alfinetada no imbecil que fez o compêndio, segue-se a machadada na instituição que autoriza semelhante dislate: “O conselheiro superior de Instrução Pública apressou-se imediatamente a aprovar para a adopção nas escolas a nova obra do arrojado reformador da nossa história elementar.” (Id., id., pp.40-41)

            No que se refere à Aritmética, Ramalho revela-nos o nome do compêndio Tabuada Metódica dos Rudimentos de Aritmética, como também o nome do autor deste último ‘João José Lopes’; para, em seguida, ridicularizar o Poder: “O livro foi aprovado pela junta consultiva de Instrução Pública para uso das escolas primárias, e está adoptado na escola anexa à escola normal primária do sexo feminino. À junta consultiva de Instrução Pública diremos …Mas não! Para quê? Nós duvidamos que a junta consultiva saiba ler.”(Id., id., p. 44)

            Que maior insulto poderia Ramalho desferir contra o Poder, do que considerá-lo analfabeto e iletrado? Depois vem a critica irónica ao autor de semelhante monstruosidade pedagógica, eivada de uma hilariedade que desarma o mais sisudo, quando o encoraja a continuar o processo onde complica aquilo que é tão linear, para terminar com um conselho que também a nós, leitores, nos faz bem, pelo riso que, forçosamente, nos irrompe nos lábios: “João José!escreve muito! – verás o bem que isso há-de fazer-te ao fígado.”(Id., id., p. 44)

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Terça-feira, 27 de Fevereiro de 2007

2007 - ANO MIGUEL TORGA

COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA

SERRA DA ESTRELA, 27 DE FEVEREIRO DE 1960

PRESERVAÇÃO

                                          Chama-se liberdade o bem que sentes,
                                          Águia que pairas sobre as serranias;
                                          Chamam-se tiranias
                                          Os acenos que o mundo
                                          Cá de baixo te faz;
                                          Não desças do teu céu de solidão,
                                          Pomba da verdadeira paz,
                                          Imagem de nenhuma servidão!
                       Miguel Torga, Diário IX, Coimbra, 1995, p. 851.
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Segunda-feira, 26 de Fevereiro de 2007

2007 - ANO MIGUEL TORGA

COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA

BARCA DE ALVA, 26 DE FEVEREIRO DE 1967

PÉTALAS

                                                                   Infantil e aliada,
                                                                   A brisa do teu espanto
                                                                   Salta de monte em monte
                                                                   E roça-me o ouvido:
                                                                   - Que maravilha é esta?
                                                                 
                                                                  - É o meu berço florido;
                                                                  O duro chão da minha terra em festa!
                                MIGUEL TORGA, Diário X, COIMBRA, 1995, P. 1002.

                                                              

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Domingo, 25 de Fevereiro de 2007

2007 - ANO MIGUEL TORGA

COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA

COIMBRA, 25 DE FEVEREIRO DE 1967

          Entrou-me desvairada pelo consultório dentro a odiar o pai e a mãe, numa revolta cega contra a tirania da família. Dei-lhe toda a razão e um comprimido. Sossegou, e procurei então ajudá-la doutra maneira, mostrando-lhe que há uma fatalidade jovem paralela à fatalidade adulta. Mas, feliz ou infelizmente, a mocidade não perspectiva. Quer, apenas. E é essa a sua força. Exige no presente o que ainda não lhe pertence, o futuro, e vive-o na irresponsabilidade de estar fora dele.
          De toda a maneira, não lhe perguntei se tinha a certeza de compreender e aceitar um dia dum filho o mesmo desprezo que agora sentia pelos progenitores, com quem se negava a dialogar, sequer. Era capaz de me responder que sim. E mentia sinceramente.
                MIGUEL TORGA, Diário X, Coimbra, 1995, p. 1002.
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Sábado, 24 de Fevereiro de 2007

VIVA ZECA AFONSO, SEMPRE!

DA MEMÓRIA … JOSÉ LANÇA-COELHO

 

ZECA AFONSO – 20 ANOS DE SAUDADE

 

            Decorria a chamada “Primavera Marcelista” em que só os nomes das instituições mudaram, mas tudo ficou na mesma – por exemplo, a PIDE passou a DGS, a Censura passou a Exame Prévio, etc., etc. -, quando se deslocou a Portugal, mais propriamente à Fundação Gulbenkian, uma argentina especialista em dança.

            Pelas contingências da vida, a referida senhora tinha uma amiga em Paço de Arcos, que a convidou para um jantar de homenagem. Tive a sorte de ir a esse evento, porque os meus pais foram uns dos convidados.

            A anfitriã tinha uma verdadeira surpresa que, naqueles tempos cinzentões da Ditadura, era completamente impensável – em carne e osso, para cantar para todos nós, o tão perseguido quanto fabuloso compositor e intérprete, Zeca Afonso.

            Aquele que eu admirava e que só conhecia dos discos a que a PIDE/DGS não deitava as mãos encardidas de sangue e tortura, estava ali junto a mim, jovem aprendiz da solidariedade e da democracia que, chegaria numa noite de Abril, alguns anos depois.

            Dedilhando a viola, José Afonso cantou as suas melhores canções, aquelas que me faziam bater o coração com mais força, e me recordavam as sábias palavras do meu avô, republicano e democrata desde 1910 que, um dia a Ditadura terminaria e Portugal seria uma democracia igual às já existentes na Europa, como a França onde acompanhei todas as convulsões do Maio de 68, - inclusivamente fiz greve às aulas no Instituto Comercial de Lisboa, estabelecimento onde estudava na altura -, e, a Inglaterra de onde me chegava a maior manifestação de liberdade individual, com as mensagens de paz e amor dos Beatles.

            A memória não me chega para afirmar se Zeca Afonso cantou nessa noite a ‘Grândola, Vila Morena’, a canção que serviu de senha aos militares de Abril, mas posso garantir que me lembra de ouvir ‘Venham mais Cinco’, ‘No Comboio Descendente’ com letra do imortal génio que é Fernando Pessoa e, ainda uma cantiga cujo título não sei, mas cujos versos – “Ergue-te canalha na mortalha, hoje o rei vai nu, os tiranos de há cem mil anos morrem como tu” - são elucidativos da mensagem de que o compositor pretendia passar.

            Foi uma noite inesquecível para um jovem de vinte anos, em que o romantismo e a poesia começavam a agarrar-se às paredes do seu ser, estar ali com um dos heróis que lutavam contra uma Ditadura que, obrigava os adolescentes a irem morrer a uma guerra colonial que nada tinha que ver com os seus interesses e ambições.

            Houve um pormenor que, nunca mais me esqueci, e me marcou para todo o sempre, pela confusão que me fez – é que Zeca Afonso não sabia de cor uma única letra das canções que escrevera e que cantava. Era necessário alguém estar continuamente diante de si, com um papel, onde estavam escritas as letras que, o fabuloso Zeca ia cantando.

            A explicação que, no momento, arranjei para esse facto, e que me continua a parecer a mais plausível, agora que são passados vinte nos após a sua morte, encontrei-a nas inúmeras e horríveis torturas que, a polícia política do regime lhe infligiu sempre que o privou da liberdade.

            Aqui fica esta evocação a um dos maiores símbolos do regime que, embora desvirtuado dos seus ideais primordiais, continua a subsistir, apesar de todos os ataques vindos dos personagens mais insuspeitos.

 

            Na Net visite o blogue   http://cempalavras.blogs.sapo.pt

           

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2007 - ANO MIGUEL TORGA

DA MEMÓRIA … JOSÉ LANÇA-COELHO

 

40+80+25 ANOS DE SOLIDÃO

 

            Ainda hoje me lembro, e já lá vão 27 anos, as voltas que dei para conseguir comprar, a um preço mais modesto, o livro de que falavam todos os meus colegas da Faculdade de Letras.

            Chamava-se Cem Anos de Solidão, era de um tal, Gabriel Garcia Marques, escritor colombiano, portanto sul-americano, tal como o portentoso argentino Jorge Luís Borges, já meu conhecido, e vinha aureolado com o epíteto de um fundador de um novo estilo literário, denominado de realismo fantástico.

            Este livro, em Portugal, saiu primeiro na colecção de bolso da editora Europa-América e, só mais tarde, penso que devido às inúmeras vendas que teve, foi publicado numa outra colecção de formato mais convencional, e também mais cara. Por tal motivo, corri Seca e Meca, como soi dizer-se, para comprar o livro de bolso que, se não me falha a memória, - era ainda o tempo dos escudos e fartava-se de ser -, fazia uma diferença de um conto e quinhentos da segunda edição. Era esta última, que me apresentavam em todas as livrarias que entrava e pedia o referido livro.

            Finalmente, numa tarde soalheira de Junho, encontrei o pequeno livro com a capa de cor azul esbatida pelo sol, na montra de uma pequena livraria, no Barreiro, localidade onde na altura dava aulas.

            Apesar de uma escrita densa, com poucos parágrafos, e uma letra pequeníssima, devorei este livro em meia dúzia de dias, e ainda hoje, ao fim de mais um quarto de século, recordo algumas passagens deste fabuloso livro que, percorria sete gerações da família Buendia, na fictícia povoação de Macondo.

            A primeira publicação de Cem Anos de Solidão foi há 40 anos e, desde essa data até hoje, venderam-se em todo o mundo, 30 milhões de exemplares, com tradução em 35 idiomas. Para explicar este êxito, Gabi, diminuitivo por que é tratado pelos seus amigos, disse:”Apercebi-me que o tom certo para a história era o mesmo que a minha avó usava quando contava as coisas mais extraordinárias.”

            A primeira grande homenagem aos 40 anos do livro decorrerá no IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, que decorrerá de 26 a 29 de Março, na cidade colombiana Cartagena das Índias. De seguida, será apresentada uma edição especial do livro, que terá uma edição de um milhão de exemplares, destinada a todos os países de língua espanhola. Também em Portugal, a Dom Quixote, actual editora de Gabi, planeia uma publicação especial da obra este ano.

            O 40º aniversário de Cem Anos de Solidão, tem lugar no ano em que Gabriel Garcia Marquez festeja os seus oitenta anos de existência e, em que passam 25 anos sobre a entrega pela Academia Sueca do Prémio Nobel da Literatura.

            Estas três datas, todas relacionadas entre si, levam-me a escrever a seguinte combinação, que pus em título deste escrito: ‘40+80+25 Anos de Solidão’.

 

                     

 

 

 

 

 

DA MEMÓRIA … JOSÉ LANÇA-COELHO

 

UMA DAS MUITAS HISTÓRIAS LITERÁRIAS DO “MARTINHO”

 

            A 7 de Janeiro de 1882, fazem agora 225 anos, reinava D. Maria I e a iluminação pública – a azeite – fora introduzida havia dois anos pelo intendente Pina Manique, quando o café “Martinho da Arcada” foi inaugurado.

            Começou o estabelecimento por se chamar “Casa da Neve”, uma vez que a neve, era o nome que, no momento, se dava aos gelados. Aliás, esta designação, era muito utilizada nos letreiros que identificavam as pastelarias da Baixa Pombalina, o que ainda actualmente se pode verificar, após uma digressão atenta naquela zona de Lisboa.

            Apesar de muitos intelectuais, de diversas épocas históricas, terem o seu nome ligado ao “Martinho da Arcada”, como são os casos, entre outros de, Bocage, Eça de Queiroz, Cesário Verde, Mário Sá-Carneiro, Almada Negreiros, para a minha memória, esta é mais uma casa, das inúmeras em Lisboa, a que, por excelência, Fernando Pessoa, deixou o seu nome ligado.

            Sabe-se que o poeta dos heterónimos viveu em diversos quartos alugados de Lisboa, nomeadamente, que o último se situava na Rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, onde actualmente se situa a “Casa Fernando Pessoa”.

            Fernando Pessoa trabalhava como correspondente comercial, servindo-se do Inglês aprendido na sua passagem pela África do Sul durante a adolescência, num escritório da vizinha Rua dos Douradores, pelo que vinha muitas vezes ao “Martinho da Arcada”, onde escrevia durante horas, prolongando-se a sua permanência neste lugar até

à noite, sendo muitas vezes convidado pelo proprietário do café para jantar.

            Testemunho da assídua permanência de Fernando Pessoa no “Martinho” é, a existência de um seu poema autografado escrito num menu, que é exibido numa parede. Assim, são muitas as histórias atribuídas ao autor de A Mensagem. A que a minha memória recorda, lida, talvez, na Biografia de Fernando Pessoa, escrita pelo ‘presencista’ João Gaspar Simões.

            Era um dia diluviano de chuva, acompanhada de uma medonha e ruidosa trovoada, que fustigava o Terreiro do Paço. Fernando Pessoa e Almada Negreiros trocavam impressões a uma mesa do café “Martinho da Arcada”. Num momento em que os relâmpagos e os trovões atingiram uma ferocidade extrema, Almada Negreiros levantou-se da mesa e veio para a porta do café, gritar para o exterior, vivas à trovoada e à brutalidade da intempérie.

            Após extravasar a sua exaltação estética diante das forças da Natureza, Almada Negreiros voltou para a mesa em que estava com o amigo. Não o vendo, passou os olhos por todos os locais em que poderia estar Fernando Pessoa e, para seu espanto, descobriu-o, extremamente assustado com o furor da tempestade, debaixo da mesa.

            O que se passava, era que Fernando Pessoa, assistira em criança na África do Sul às tremendas trovoadas tropicais, que lhe deixaram um medo incontrolável, que mesmo depois de adulto não conseguia superar.

 

           

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HISTÓRIA

DA  MEMÓRIA ... JOSÉ LANÇA-COELHO

 

TARRAFAL - UM  CAMPO  DE  CONCENTRAÇÃO  PORTUGUÊS

 

            O Portugal dos ‘brandos costumes’ chefiado por Salazar, também teve um campo de concentração idêntico aos do nazismo alemão, que denominou Colónia Penal – chamava-se Tarrafal, por se situar num local do mesmo nome, na ilha de Santiago, uma das mais inóspitas no arquipélago de Cabo Verde, e foi criado a 23 de Abril de 1936, sendo inaugurado em Outubro do mesmo ano, com 152 deportados, alojados numa dúzia de barracas de lona.

            O ‘Campo da Morte’, como também era conhecido, funcionou entre 1936 e 1954, período em que por lá passaram 340 presos, dos quais morreram 32.

            Era neste campo que, existia a tristemente célebre ‘frigideira’, - cela de isolamento, rectangular, sem janelas, onde entre as10 e as 16 horas, a temperatura se situava entre os 40 e os 60 graus centígrados. O pai de um amigo meu, oficial da Marinha de Guerra, esteve lá por participar numa revolta contra Salazar. Contava ele que, o pior de tudo, era aguentar os pés, obrigatoriamente descalços, no chão de cimento. Os motivos que levavam os presos do Tarrafal a serem encerrados na frigideira eram, sobretudo, respostas dadas aos guardas que estes consideravam ofensivas, a perda de uma peça de roupa e a negação ao trabalho por doença.

            No que se refere à saúde, são elucidativas as palavras que, em Abril de 1937, quando o médico Esmeraldo Pais Prata chegou ao campo, terá proferido: “Estou aqui para passar certidões de óbito, não para curar. A água estava inquinada e os alimentos preparados sem higiene, porém, a partir de certo momento, os presos políticos foram autorizados a preparar a sua própria comida, evitando assim algumas doenças. Comiam pão, arroz e albacora, um peixe da família do atum.

            O dia no Tarrafal começava às 5 h, seguindo-se o pequeno-almoço meia hora depois, às 6 formatura e partida para trabalho forçado. Almoço às 10,45 e descanso até às 14. Seguia-se novo período de trabalho até às 17, e meia hora depois jantava-se, fazendo-se a recolha e contagem dos prisioneiros às 21 h.

            Entre 1940 e 1943, o director do campo, Olegário Antunes, autorizou a entrada de livros, papel, uma estante para biblioteca e a prática de desporto. Neste período, os presos organizaram ‘jogos florais’, fados e guitarradas, e chegaram até a representar uma peça no Natal, escrita por um preso, onde se parodiava os ditadores Hitler e Mussolini. O estudo e a leitura faziam-se no refeitório, onde muitos presos aprenderam a ler, auxiliados pelos colegas. Destaque para dois presos que desenvolveram estes estudos, Bento Gonçalves, o fundador do PCP, e o anarquista, Mário Castelhano.

            As novidades chegavam aos presos através dos deportados mais recentes e, pelo ‘Rádio Merda’, designação que os presos davam aos bocados de jornal a que os guardas se limpavam quando iam à sanita. Alguma informação circulou também em papel de mortalha, com que eram feitos os cigarros.

            Actualmente, o campo de concentração do Tarrafal encontra-se em estado de degradação. Fala-se que será um museu do fascismo português. Esperemos que não lhe suceda o mesmo branqueamento histórico, que aconteceu com o sede da PIDE na Rua Antónia Maria Cardoso, que se transformou num condomínio de luxo.

 

 

 

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LIVROS LIDOS - JOSÉ LANÇA-COELHO

RECENSÕES DE LIVROS

 

“ELEANOR RIGBY” – DOUGLAS COUPLAND

 

            Liz Dunn  é uma americana, solteira, que leva uma vida maçadora numa empresa, até que um dia, lhe aparece um filho, fruto de uma relação tida em Roma, numa viagem de finalistas a Itália, que deu para adopção. Jeremy, assim se chama o filho, tem vivido com diversas famílias de agricultores, a que nunca se adaptou, até que aparece em casa da mãe, com esclerose múltipla (EM).

            Liz Dunn percebeu que estava grávida, quando ao fim de 5 meses lhe faltou a menstruação. Não se lembra da relação que teve, não sabe se foi violada. Fica alegre com a chegada do filho e vive com ele até a morte do rapaz, que tem visões e vê agricultores e tubos pendurados do céu.

            Entretanto, uma noite, Liz vê um asteróide cair junto de si. Apanha-o alegremente, leva-o para casa, e coloca-o debaixo da almofada na sua cama.

            Alguns dias depois, Liz é contactada através do seu email, que é Eleanor Rigby, - uma música dos Beatles, onde se fala de uma mulher que vive uma vida impessoal -, sendo informada de que o pai do seu filho está vivo e vive em Viena. O contacto é feito por um polícia que procura provas para acusar o pai de Jeremy, pois este tem a paranóia de atacar mulheres verbalmente. Liz apanha o avião para Frankfurt, e ao descer, o aeroporto desta cidade alemã é evacuado pela polícia especial, sendo presa a americana. Sem perceber nada do que se está a passar com ela, a polícia interroga-a acerca do que traz na sua mala, e quando fala do seu meteorito,  é informada que este é uma peça de uma nave espacial russa que há anos se desintegrou na atmosfera, e que está carregada de uma perigosa radioactividade.

            Restituída à liberdade, Liz confronta-se com o pai do seu filho, entretanto morto, e é informada de que estava completamente alcoolizada quando teve relações sexuais. Ambos são dois solitários, que acabam por ficar um com o outro. Entretanto, Liz engravida de novo, mas devido ao contacto com o meteorito sabe que os seus glóbulos brancos diminuíram enormemente, o que lhe pode provocar a morte a qualquer momento. No final, Liz começa a ter as visões do filho e fala com os agricultores a que Jeremy se referia nos seus sonhos.

            Livro imaginativo, interessante e de leitura fácil, apesar das primeiras páginas serem muito banais.

(Lido de 20 a 25 de Julho de 2006)

 

“A CASA DOS BUDAS DITOSOS” – JOÃO UBALDO RIBEIRO

 

            Livro polémico pela matéria que trata – o tabu sexual – de  uma forma o mais aberta possível, o que, embora não justifique, permite compreender a censura de que foi alvo por parte dos merceeiros novos-ricos, donos de hipermercados.

            A narrativa trata o testemunho de uma mulher libertada ou libertária, que conta de uma forma aberta as suas aventuras sexuais com homens, com mulheres, e com grupos formados por pessoas de ambos os sexos.

            O livro desmascara todos os preconceitos sexuais da sociedade, desde o incesto (a narradora conta que a melhor relação que teve foi com o seu irmão) a todas as formas de sexo possível. Cómico, o que a narradora escreve acerca de Sócrates e do amor homossexual que tem com o seu discípulo Alcibíades, bem como da sua mania de corrigir toda a gente. A narradora goza ainda com Freud e a Psicanálise, a quem atribui como positivo apenas dois filmes de Woody Allen, e também com A República de Platão, a quem chama fascista.

            Livro libertador que gostei muito de ler.

(Lido de 26 a 29 de Julho de 06)

 

“O ENIGMA DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO” – ELLIÉTE ABÉCASSIS

 

            Um ‘thriller’ religioso bem concebido, que se tivesse tido a publicidade do ‘Código Davinci’ de Don Brown, poderia ter o mesmo, ou mais, sucesso que este livro.

            Os Manuscritos do Mar Morto foram descobertos em 1946, mas só em 2006, a sua tradução chegou a Portugal.

            A tese principal do livro é que Jesus Cristo pertenceu à seita religiosa dos Essénios, que se retiraram do contacto mundano e se refugiaram em grutas no deserto, para preservar os seus conhecimentos religiosos.

            Os principais personagens do livro são pai e filho, que andam de Israel para os EUA, França, Londres, procurando um dos rolos que constituem os Manuscritos e contactando as diversas pessoas que os estudam. Nestes locais vão-se sucedendo os suicídios, por crucifixação, entre os que estudaram os Manuscritos.

            No final, o pai revela ao filho que pertenceu à seita dos Essénios.

(Lido de 30 de Julho a 8 de Agosto de 06)

 

“PROSAS  BÁRBARAS” – EÇA DE QUEIRÓS

 

            Releitura deste livro após 27 anos, para marcar na prosa de Eça, todas as alusões ao mundo vegetal, animal e etéreo. Curioso, o facto dos sublinhados que fiz há 27 anos, já nada me dizerem – como a nossa atitude perante a vida, muda tanto com o passar dos anos!

            Quanto ao Eça deste livro, ele mostra-se extremamente panteísta, chegando até ‘avant la lettre’, a ser ecologista, no verdadeiro sentido do termo.

            Livro apenas lido ao serão, depois do jantar, com este computador portátil no joelho, onde vou registando as diversas entradas de um possível?! Dicionário, sobre a problemática acima referido.

(Lido de 1 de Junho 06 a 16 de Dezembro de 06)

 

 

“HISTÓRIAS DE MULHERES” – ROSA MONTERO

 

            Biografias de diversas mulheres, cuja existência mudaram o mundo em que viveram, pela sua coragem, bravura, modo de estar na vida, etc.

            Excelentes algumas como, Mary Wollstonecrft, a mãe de Mary Shelly, também escritora que, escreveu ‘Frankenstein’.

(Lido de 17 de Dezembro 06 a 3 de Janeiro de 2007)

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DA  MEMÓRIA … JOSÉ LANÇA-COELHO

 

2007 – ANO MIGUEL TORGA

 

            Comemora-se este ano, o 1º Centenário do nascimento do poeta Miguel Torga, nascido a 12 de Agosto de 1907, em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes. Muitas são as homenagens, nacionais e estrangeiras que, já começaram a fazer-se a este grande vulto da cultura, digo-o sem qualquer pejo, universal.

            Como é um dos meus contemporâneos que mais admiro, aqui fica esta página tirada do meu diário irregular.

Mem Martins, 2 de Dezembro de 1999 – Mais um dia de peregrinação pelas escolas, a favor da divulgação literária. Mem Martins, Primária nº1, foi o estabelecimento de ensino que me acolheu, para a habitual palestra sobre os meus modestos livros, que finaliza sempre com uma sessão de questões, onde os meus leitores me perguntam ‘tudo e mais alguma coisa’. Nesta última parte, mesmo que não seja questionado sobre este tema, falo sempre dos meus escritores preferidos, e, claro, é impossível não referenciar Miguel Torga. Acabo de dizer quanto gosto deste transmontano, como artesão da escrita e como verdadeiro representante do que deveria ser a espécie humana, sobretudo, no que respeita à solidariedade e à luta contra todas as formas de repressão e intolerância, quando sou inesperadamente interrompido pela voz da directora da escola que, assiste à palestra com a turma a que dá aulas.

            - Só a mim é que ele havia de dar um estalo !

            Se esta exclamação me surpreende, por outro lado, deixa-me adivinhar, fascinado, um episódio desconhecido da vida de um dos meus Mestres. Que terá acontecido entre Torga e esta minha colega da profissão de ensinar? As únicas palavras que me ocorrem são: “Quem me dera ter levado esse estalo. Pelo menos, era sinal que o conhecera pessoalmente, como tanto gostava.”A professora explica-me, então, a sua afirmação, começando por concordar com a coerência e justeza intelectual do escritor, porém, a sua exclamação reporta-se ao médico Adolfo Rocha que, o pseudónimo Miguel Torga comporta. Conta que é de S. Martinho de Anta – essa terra mítica que, é uma das grandes capitais do Mapa da Literatura Universal -, que aos doze anos teve de ser operada às amígdalas no hospital de Vila Real, que quando sentiu o efeito da anestesia lhe pareceu sufocar, começando a espernear freneticamente. As suas pernas de criança aflita foram bater no cirurgião, que, caindo para trás, se estatelou contra a mesa onde estavam os instrumentos necessários à operação. Vendo a atrapalhação da miúda, o médico, que como já se percebeu, era o meu mestre Torga envergando a imaculada bata da profissão, assim que se levantou, foi junto da paciente e, com o tal estalo bem dado, ajudou-a a receber o resto da anestesia que lhe faltava, adormecendo-a em definitivo para a necessária intervenção cirúrgica. Aqui está, pois, um incidente que, não me lembro de Torga, referir num dos seus dezasseis Diários. Uma das muitas coisas que me fascina na espécie humana, são estes pequenos episódios do quotidiano, a que os grandes vultos da Humanidade não dão valor, talvez até por fazerem parte do seu dia-a-dia, mas que nós, os mais comuns dos mortais, andamos sempre a farejar, não só pelo pitoresco que encerram, como também porque essas situações nos dão uma perspectiva desconhecida da pessoa a quem se referem e, a aproximam mais das nossas realidade e natureza humanas.

 

           

publicado por cempalavras às 19:17
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