Sexta-feira, 27 de Abril de 2007
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 27 DE MAIO DE 1987
Portugal suspenso dum jogo de futebol. É o máximo a que pode chegar a tensão nacional. Medularmente desinteressados do nosso destino colectivo, só atentos a um egoísta quotidiano pessoal, satisfazemos as obrigações gregárias de sonho e acção apaixonando-nos momentaneamente por um mero resultado desportivo. Como não nos é possível esquecer inteiramente que fazemos parte de uma comunidade, e que a nossa justificação também depende do que ela for e fizer, sofismamos os seus valores. Amanhã, se ganharmos hoje, toda a mediocridade nacional, que obscuramente nos mortifica, estará redimida. Seremos os melhores do mundo por alguns dias.
MIGUEL TORGA, Diário XV, Coimbra, 1995, p. 1477.
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
S. MARTINHO DE ANTA, 26 DE ABRIL DE 1985
GLÓRIA
Depois do inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.
MIGUEL TORGA, Diário XIV, Coimbra, 1995, p.1445
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 25 DE ABRIL DE 1974
GOLPE MILITAR. ASSIM EU ACREDITASSE NOS MILITARES. FORAM ELES QUE, DURANTE OS ÚLTIMOS MACERADOS CINQUENTA ANOS PÁTRIOS, NOS PRENDERAM, NOS CENSURARAM, NOS APREENDERAM E ASSEGURARAM COM AS BAIONETAS O PODER À TIRANIA. QUEM PODERÁ ESQUECÊ-LO? MAS PRONTO: DE QUALQUER MANEIRA, É UM PASSO. OXALÁ NÃO SEJA DURADOIRAMENTE DE PARADA.
MIGUEL TORGA, Diário XII, COIMBRA, 1995, P. 1174.
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 24 DE ABRIL DE 1951
OFERENDA
Menina que não lês o meu poema
Mas que tens a pureza que nele canto,
Vê na balança dos meus olhos quanto
Pesa a ternura humana que te dou:
Ponho nas tuas mãos ingénuas de criança
Toda a herança
Que da morte da vida me ficou.
MIGUEL TORGA, Diário VI, Coimbra,3ª ed., 1978, p. 31.
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA 23 DE ABRIL DE 1960
Já não consigo reconhecer a minha fisionomia de ontem. É como se durante três dias tivesse usado um rosto clandestino.
MIGUEL TORGA, Diário IX, COIMBRA, 1995, p. 858.
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 22 DE ABRIL DE 1955
POEMA MELANCÓLICO
A NÃO SEI QUE MULHER
Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.
Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão.
MIGUEL TORGA, Diário VII, Coimbra, 3ª ed. rev. 1983, p. 183.
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 21 DE ABRIL DE 1949
VAGABUNDAGEM
Já me servia ser
Marinheiro num rio.
Pilotar um navio
De trazer lenha de Penacova...
Ter uma vela
Nesta aguarela
Que se renova.
MIGUEL TORGA, Diário V, 3ª ed. rev., Coimbra, 1974, p.12.
Sexta-feira, 20 de Abril de 2007
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 20 DE ABRIL DE 1988
LEGADO
Já não digo a palavra que te prometi.
Não há mais tempo, vai anoitecer.
Ouve-a, pois, no silêncio que te deixo
Como herança.
Nele, pulsam todos os versos
De que gostares,
Meus ou doutro poeta, não importa.
O que é preciso é que não esteja morta
No teu coração
A pungente saudade
Das horas que tivemos.
Horas de eternidade,
Se souberes recordá-las como as vivemos.
MIGUEL TORGA, Diário XV, Coimbra, 1995, p. 1520.
Quinta-feira, 19 de Abril de 2007
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
COIMBRA, 19 DE ABRIL DE 1991
FOLHINHA
Vão decorrendo as horas de amargura
Iguais no desespero e na desesperança.
Deixam na alma o luto da fuligem
Nas chaminés onde o passado ardeu.
Chegou a primavera insidiosamente,
Mas, mal apetecido,
O sabor temporão de cada fruto
Não dá consolação ao paladar.
A sombra do ocaso adivinhado
Tolda o brilho dos gestos,
E os versos não condizem com a letra
Da inspiração.
O mundo envelheceu nos meus sentidos.
E só por ele o amei,
Quando, iludidos,
Mo revelaram como ainda o sei.
MIGUEL TORGA, Diário XVI, Coimbra, 1995, p. 1615.
Quarta-feira, 18 de Abril de 2007
COMERMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
S. MARTINHO DE ANTA, 18 DE ABRIL DE 1962
INSTRUÇÃO PRIMÁRIA
Não saibas: imagina...
Deixa falar o mestre, e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.
Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um a-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...
Vou pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...
MIGUEL TORGA, Diário IX, Coimbra, 1995, p. 904.