Quinta-feira, 31 de Maio de 2007
Outeiro, Monsaraz, 31 de Maio de 1986
MENIR
Salve, falo sagrado,
Erecto na planura
Ajoelhada!
Quente e alada
Tesura
De granito,
Que, da terra emprenhada,
Emprenhas o infinito!
MIGUEL TORGA, Diário XIV, Coimbra, 1995, p. 1461.
COIMBRA, 30 DE MAIO DE 1968
AGENDA
Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho,
Sábados de cansaço.
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada.
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?
MIGUEL TORGA, Diário X, Coimbra, 1995, p. 1034.
COIMBRA, 30 DE MAIO DE 1952
QUEIXA
Nada me cai do céu. Nem um poema!
Tudo me custa um dia de lavoira.
A velha bruxa, a Moira,
Viu-me sempre com olhos de megera ...
Galeriano desde o nascimento,
Compro a não sei que dono da galera
Os próprios versos em que me lamento.
MIGUEL TORGA, Diário VI, Coimbra, 3ª ed., 1978, p. 91.
COIMBRA, 29 DE MAIO DE 1950
CLARIDADE POSSÍVEL
Desenhei a nanquim a minha estrela.
Deve ser negro o traço que limita,
Na grande labareda, a pequenina chama
De cada um.
Pétala da rosa universal,
Ninguém a vê, sequer.
Mas é ela que eu tenho e me conduz
Através desta noite desmedida
Onde a luz
Foi brutalmente interrompida.
MIGUEL TORGA, Diário V, Coimbrfa, 3ª ed. rev., 1974, p. 93.
COIMBRA, 28 DE MAIO DE 1952
EXORTAÇÃO
Musa, faz-me cantar!
Fura-me os olhos, se preciso for.
Vadio rouxinol encarcerado,
Não me deixes calado
Aos ferros verticais da minha dor.
Força-me o desespero emudecido
E solta o meu protesto em melodia.
Noite é já neste mundo anoitecido
Onde só tem sentido
A luz secreta que nos alumia.
Obriga-me a sonhar outra floresta
De homens em liberdade.
Aves na sua festa,
Que ninguém prende, que ninguém molesta
Com as fronteiras de nenhuma grade.
MIGUEL TORGA, Diário VI, Coimbra, 3ª ed., 1978, p. 88
COIMBRA, 27 de Maio de 1977
ALVORADA
Foi tudo simples: aconteceu.
O dia amanheceu,
Acordei,
E reparei
No milagre concreto de viver.
E cantei
Como um galo feliz.
O que esse canto diz
É que não sei.
MIGUEL TORGA, Diário XII, Coimbra, 1995, p. 1240.
Moçâmedes, 26 de Maio de 1973
O deserto ainda, mas agora palmilhado, rodado, sobrevoado. Areia, areia, areia, e milagres geométricos do vento, milagres pictóricos da luz, milagres musicais do silêncio. (...)
MIGUEL TORGA, Diário XII, Coimbra, 1995, p. 1153
MOÇÂMEDES, 25 DE Maio de 1973
O deserto abordado. A terra a transformar-se progressivamente em negativo. O reino mineral degradado, e o vegetal e o animal ainda a teimarem, a reduzirem as exigências, espalmados numa folha coriácea, aguçados num pico, endurecidos num casco. (...)
MIGUEL TORGA, Diário XII, Coimbra, 19995, p. 1153.
Lobito, 24 de Maio de 1973 - Quatro instantâneos: a aridez dos montes circundantes, Camões entronizado num pedestal, o forte de Catumbela e o empório comercial de Cassequel. A terra, outrora coberta de vegetação, esterilizada pela incompetência sanitária que incendiou o mato para debelar a doença do sono; o épico a enfunar o peito heróico diante do analfabetismo indígena; a força de ocupação fortificada e celebrada; e a exploração colonial com as letras todas.
MIGUEL TORGA, Diário XII, Coimbra, 1995, p. 1152.
COMEMORAÇÃO DO 1º CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA
SANTO ANTÓNIO DO ZAIRE, 23 DE MAIO DE 1973
DIOGO CÃO
A pura glória tem
A humilde sigeleza do teu nome.
E cresce eternamente,
Como um caule imortal,
No fuste do padrão
Que a tua inquietação
Ergueu
Nestes confins do mundo onde chegou.
Limpo brasão de quem só descobriu
E nada conquistou.
MIGUEL TORGA, Diário XII, Coimbra, 1995, p. 1152.