“A LANÇA”
JORNAL DE CULTURA
24 DE SETEMBRO DE 2012
BULHÃO PATO – 1º CENTENÁRIO DA MORTE
Nascido em Bilbau, Espanha, a 3 de Março de 1829, embora o seu pai fosse filho de portugueses, faleceu no Monte da Caparica, Portugal, a 24 de Agosto de 1912, fazem agora cem anos.
Após passar a infância na aldeia de Deusto, Bilbau, veio para Portugal devido à guerra civil espanhola.
Fixa-se em Lisboa, onde se matricula na Escola Politécnica, embora o seu maior interesse seja a literatura.
Começa a colaborar em diversos órgãos de comunicação como, O Panorama e Revista Universal Lisbonense, ao mesmo tempo que convive com os escritores, Herculano, Garrett, Latino Coelho, e traduz Shakespeare e Victor Hugo.
Bulhão Pato era extremamente supersticioso, não comendo com treze pessoas à mesa, ao mesmo tempo que não dispensava, como aprendera com Alexandre Herculano, voltar o pão, quando estava com o lar para cima, para que não ocorresse alguma morte na família.
Encarnando uma figura marcante de um certo romantismo declamatório e decadente de finais do século XIX, foi caricaturado por Eça de Queirós em Os Maias, com a personagem do poeta Alencar, o que despoletou uma feroz polémica, de que faz parte a poesia eciana:
«O Alencar d’Alenquer
Que quer? Na verde campina
Não colhe a tenra bonina
Nem consulta o malmequer…
Que quer? Na verde campina
O Alencar d’Alenquer
Quer menina!»
(Eça de Queirós, Os Maias, Lx, ed. Círculo de Leitores, p. 172)
A sua estreia no universo literário ocorre em 1850 com a obra Poesias, embora se torne mais conhecido com o poema romântico Paquita (1856) que, por um lado, é elogiado por Herculano, a quem o dedica, e por outro, é negativamente criticado por Eça que o define como um poema «frouxo, líquido, limitado, escrito por um espírito meigo e simpático, por um moço de bela alma e de honesta consciência».
Bulhão Pato é um poeta do ultra-romantismo, cujas maiores influências remontam a Lamartine, a Byron e ao poeta espanhol António de Trueba, que, deixou obra também em outros géneros literários como, um livro de receitas, O Cozinheiro dos Cozinheiros (1871), - não se esqueça o prato a que ficou ligado o seu nome «Ameijoas à Bulhão Pato», embora não exista qualquer registo sobre ele, aliás, na Arte de Cozinha (1875) de João da Matta, reeditada em 1993, pode ler-se no prefácio assinado por Melo Lapa que, o prato de amêijoas se deve ao citado Matta, feito como homenagem ao seu amigo Bulhão Pato; a este último podem atribuir-se os seguintes pratos: «Lebre à Bulhão Pato», açorda à andaluza, perdizes à castelhana e arroz opulento -, obras de memórias e biografias como, Sob os Ciprestes. Vida Íntima de Homens Ilustres (1877), e Memórias I – Cenas de Infância e Homens de Letras (1894).
José Lança-Coelho
PENSAMENTO: «Morrer! Que suave desfecho, se o desfazer- -se a vida a desfibrações lentas não custasse tanto.» - Camilo Castelo Branco (1825-1900)
PROVÉRBIO: «Setembro molhado, figo estragado.»
DIÁRIO: “Como as aulas não abrem tão cedo e nada temos estes dias a fazer em Lisboa, regressámos a Fontanelas para um fim-de-semana. Chove. Todo o caminho choveu pesadamente. Mal se via a estrada. Agora chove ainda, mas serenamente. A caruma do pinhal do pinhal avermelhou. Os pinheiros enegreceram, ressumando aguaceiro. Gosto de ouvir cair a chuva. Mas com a caruma, mal se ouve. Desoprimido da sufocação de Lisboa. Respira-se melhor.» Vergílio Ferreira, Conta-Corrente I (24 de Setembro de 1976)
EFEMÉRIDES:
1789 – Morre, em Lisboa, o jurista Pascoal de Melo.
1834 – Morre D. Pedro IV, rei de Portugal e primeiro imperador do Brasil.
1862 – Nasceu, no Rio de Janeiro, a escritora Júlia Lopes de Almeida.
“A LANÇA”
23 SETEMBRO 2012
JORNAL DE CULTURA
MARIA TERESA HORTA VS. PASSOS COELHO
COM A MARQUESA DE ALORNA NO MEIO
Como foi largamente divulgado pelos meios de comunicação, a escritora Maria Teresa Horta acaba de ganhar o Prémio Literário D. Dinis, dado pela Casa de Mateus, com o seu romance histórico A Luzes de Leonor. No entanto, a autora afirmou que, embora se sinta honrada pelo prémio que lhe foi concedido e pelos membros do júri, se recusa a recebê-lo das mãos do primeiro-ministro Passos Coelho que, nas suas próprias palavras, «está a destruir o nosso país».
Na minha modesta opinião de leitor compulsivo que lê cerca de sessenta livros anualmente, a obra em questão foi o melhor romance histórico publicado este ano, sendo de inteira justiça o galardão agora atribuído.
Podemos considerá-lo um fresco sobre a cultura do século XVIII, tanto em Portugal, como na Europa, em especial, na França. Todos os literatos e filósofos portugueses se relacionam com Leonor, primeiro visitando-a na grade do convento de Chelas, local para onde a envia o Marquês de Pombal, e depois nos seus salões, embora estes continuem a ser vigiados pelo Intendente da Polícia Pina Manique, após a restituição da liberdade. De Bocage a Filinto Elísio, de Correia Garção a Bingre (p. 77), de Teresa de Mello Breyner (p.674) a Joana Isabel Forjaz (a poetisa mais controversa de Lisboa na época) estão lá todos. Os grandes filósofos da época das Luzes, nomeadamente, Voltaire, Rousseau, Kant, e os poetas, Lamartine, Goethe, Schiller, além de autores completamente desconhecidos em Portugal, como William Blake (p. 956) e Choderlos de Laclos, e outros, são lidos por Leonor e aconselhados como marcos de pensamento às filhas. (p.781) Também as grandes mulheres da época como, Théroigne de Méricourt, Olympe de Gouges, Etta Lubina, Germaine de Stael, Marie Anne Vigée-Lebrun, Sophie de Condorcet, Elizabeth Vigée-Lebrun e Suzanne Necker, estão presentes nas leituras da Marquesa de Alorna. Esta, também condessa de Oeynhausen, fundou a «Sociedade da Rosa», sendo acusada de ser uma loja maçónica, embora fosse apenas um salão, onde sobretudo se dizia poesia, cantava e tocava piano. Até os políticos franceses da época receavam a sua influência: Talleyrand insiste na urgência de se afastar Leonor da corte, enquanto Fouché defende a expulsão da marquesa de Portugal, cada vez mais certo da importância dela enquanto elemento da ligação entre a Vendeia e a fidalguia portuguesa. Napoleão inquieta-se e ordena que sejam enviados despachos nesse sentido, a pressionar o Regente (futuro D. João VI) que, pressentindo o perigo, se deixa enredar, como sempre temendo as palavras de mando. (p. 992)
Procurámos na vasta hemeroteca de «A LANÇA» a pasta relativa à autora e, entre outras curiosidades, encontrámos uma carta que Maria Teresa Horta escreveu à sua tetravó, relacionada com a obra em destaque, e publicou no JL, nº 973, de 16 a 29 de Janeiro de 2008. É essa carta que transcrevemos de seguida.
José Lança-Coelho
CARTA A…
LEONOR, MARQUESA DE ALORNA
Minha querida avó do meu coração,
Não sei se vais sequer abrir a minha carta, depois de tanto ter vindo a desinquietar-te na morte, a rebuscar tua vida, querendo saber dela no extremo, ou tudo dela no excesso, enquanto te procuro e vou, minuciosa, atrás do destino por ti determinado e que eu reconstituo através da minha escrita, tu passando de realidade a personagem de um romance, onde tão depressa cumpro com rigor as tuas datas e gestos e factos e partos e poemas, como te invento a partir de mim mesma, teus versos, cadernos, cartas, diários. Insubmissa, no desenho árduo de um perfil de mulher em desobediência à sua sorte.
Imagino-te e recrio-te, procuro-te, persigo-te, no convento, no Paço, de país em país, por veredas e atalhos. Sigo-te o trilho de mulher incendiada: nossos sangues, dirias, e eu digo genes em correnteza de avós e filhas e netas, tu de Leonor de Távora gume e aço, e eu de ti em busca do voo de asa. Mas a preferir-te, a reconhecer-te melhor nas paixões, nos desacertos, nas impaciências, no corpo da escrita, no sobressalto, no desatino, na poesia inesperada.
E adorando-te Leonor por tudo isso.
Não sei se vais sequer abrir a minha carta, por te parecer demasiado obsessiva no pintar teu retrato, escrever-te no descrever-te: de mel e nardo e tumulto, a reconstruir-te com minúcia na determinação, nas Luzes, na perseverança, nos sustos e medos que levantavas. Neste jogo de ambas, por entre os enleios de que são feitas as palavras de te construir: fogo, desobediência, aprisco. A entretecer-te ao longo destes anos, a sentir os teus dedos aflorando o meu ombro: a tua mão invisível, sem peso, debruçada a leres o que escrevo, numa atenção que aceito; aprendendo a reconhecer o som dos teus passos inexistentes, o sussurro da cauda do teu vestido, num requebro de pássaro. Porque eu continuo a inventar-te a partir de uma comum origem, desenho a tinta cor de ferrugem do teu tinteiro de prata.
Achando o teu traço.
Meu embaraço, ao perceber que lês mais as minhas do que as tuas palavras. Surpreendo-me ao querer-te e acabo-me no observar-te, no espiar-te, no escutar-te perto, na devassa da intimidade. Mostrando-te contraditória e demasiado intensa para o desejo que tinhas de te identificares com a Razão, leitora ardorosa de Rousseau, de Voltaire e de Byron, mas também de Teresa de Ávila e de Hildegarde de Bingen.
Volteias e reclinas-te.
Não sei se vais sequer abrir a minha carta, perplexa por eu te despertar, menos Orfeu do que Eurídice na descida ao esquecimento onde estavas, a pesar-te o silêncio e a solidão de poetisa; insatisfação sem partilha, nem o atestar do teu talento literário e de tudo o mais que te movia. Agora já consigo antever-te rapariga, olhar de urdidura turvado pelo desagrado, contrariando quem te queria amordaçar e destrui-te a ambição, em oposição aos déspotas; primeiro entre pai e padres, freires e confessores, mais tarde na Corte e em salões literários, aturdidos diante do teu brilho.
Tu cindida.
Tu de versos, de seda e sede e cetim, olhar de cinza acesa, sem nunca te estilhaçares, quebrares, temeres abrir a caixa de Pandora pois guardavas a esperança. Tenaz e engenhosa na volúpia de enfrentar as adversidades.
Dúplice.
Não se vais sequer abrir a minha carta, surpreendida na morte, com a inesperada vida que te ofereço. Pudesse dar-te eu a eternidade, a posteridade que tanto almejaste, o luzimento Leonor que tu mereces.
Esta neta a mais terna
T.