O CÍNICO QUE NÃO É CÍNICO
josé lANçA-coelho
Mas como é que é isto de um cínico que não é cínico? – pergunta o leitor.
Eu explico o que quero dizer. Pense num político qualquer, pois ao fim e ao cabo, eles são todos iguais nos seus (deles) objectivos.
Escolhido o político, munamo-nos de dois dicionários, um de Língua Portuguesa e outro de Filosofia.
Abramos o primeiro e, registemos o que diz sobre o vocábulo cínico (o que tenho aqui à mão no momento em que escrevo é o «Dicionário Prático Ilustrado», Lello & Irmão – Editores, Porto, 1979, mas podia ser qualquer outro): impudente, desavergonhado, dissimulado.
Apliquemos qualquer destes sinónimos ao discurso do político escolhido. No meu caso particular, o que escolhi diz que «se preocupa com a minha saúde, com a minha velhice, enfim, com a minha qualidade de vida», porém, o que faz? Fecha Centros de Saúde, Maternidades, reduz o número de especialidades médicas, aumenta as taxas das consultas, rouba-me os subsídios de férias e Natal, aumenta-me os impostos e, não contente com isto, ainda cria uma taxa que me obriga a pagar a que chama Taxa de Solidariedade Única (saberá sua excelência o significado de Solidariedade? Parece-me que não, pois este último vocábulo tem que ver com escolha e não com obrigatoriedade). Perante tudo isto, todos os sinónimos de cínico escritos acima, encaixam na perfeição no político escolhido, daí que, se ele é impudente, desavergonhado, e dissimulado, então ele é, extremamente, cínico.
Porém, se o título do presente artigo é «O cínico que não é Cínico», como é que podemos negar o que já afirmámos? A resposta é, através da Filosofia.
Assim, peguemos num dicionário desta última disciplina («Diccionário de Filosofia Abreviado», J. Ferrater Mora, ed. Sudamericana, Buenos Aires, 1972) e traduzamos o significado filosófico do termo Cínico: «A escola cínica recebe, segundo alguns autores, o seu nome do vocábulo ‘cão’, que os cínicos consideravam esta qualificação como uma honra. Porém, o nome provém do facto de Antístenes (444-365 a.C.), o fundador da escola, ministrar os seus ensinamentos no Cinosargo, um ginásio perto de Atenas. O sentido pejorativo adquirido posteriormente pelo vocábulo deve-se ao desprezo que os Cínicos tinham pelas convenções sociais. O Cínico era considerado como o homem a quem as coisas mundanas eram indiferentes. Mais do que uma filosofia, o Cinismo é uma forma de vida, surgida num momento de crise. Os fundadores do Cinismo terão sido, o já citado Antístenes, a que se seguirá Diógenes (413-327 a.C.) e Crates de Tebas (?-326 a. C.). O aspecto mais em destaque dos Cínicos é o anticonvencionalismo, destacando-se outros, como: a igualdade social, o retorno à natureza, e, o autodomínio.»
O político que o leitor escolheu é anticonvencional?; pretende, na verdade, a igualdade social, embora a apregoe?, assim como o regresso à vida pura sem mordomias; e, preocupa-se com o domínio da alma? Não. Então não se preocupe que o meu escolhido também não! Dai que, ele seja cínico no sentido linguístico, mas não, no filosófico. Está, então, explicado o sentido da expressão, «O cínico que não é Cínico».