Ternura em movimento,
Vamos os dois - o sol e a sombra juntos,
O futuro e o passado no presente.
O que te digo é urgente;
O que tu me respondes não tem pressa.
A minha voz acaba na vertente
Onde a tua começa.
Apertamos as mãos enamoradas.
Uma quente, outra fria...
E sorrimos às flores que no caminho
Nos olham com seus olhos perfumados.
Tu, de pura alegria;
Eu, de melancolia...
Um a cuidar, e o outro sem cuidados.
Canta um ribeiro ao lado.
Ambos o ouvimos, mas diversamente.
O que em ti é promessa de frescura
À terra da semente semeada,
Em mim é já certeza de secura
De raiz arrancada.
Almas amantes e desencontradas
Na breve conjunção
Que tiveram na vida.
Levo de ti um halo de pureza,
Deixo-te a inquietação duma lembrança...
E é inútil pedir mais à natureza,
Surda ao meu desespero e à tua confiança.
MIGUEL TORGA, Diário X, Coimbra, 1995, p. 986.
Os absurdos que criamos por nossas próprias mãos! Nomeamos as coisas, e elas escondem o rosto. Vim aqui várias vezes, e tanto olhei, tanto perscrutei, tanto furei, que lá consegui circunscrever na inquietante dispersão da luz a apaziguadora nitidez de uma imagem. E, naturalmente, fixei-a no papel. Mas o que foste fazer! Voltei agora, passados anos, e sinto-me preso na ratoeira que armei. Alargo as pupilas, alargo os sentidos, alargo o entendimento. E nada. Entalado nos dententes de ferro expressivo, vejo as minhas Berlengas. E não eram elas que procurava. Eram outras, que não vi.
MIGUEL TORGA, Diário X, Coimbra, 1995, pp. 1035-6.
Canto.
Mas o meu canto é triste.
Não sou capaz de nenhum outro, agora.
Em cada verso chora
Uma ilusão,
Tolhida na amplidão
Que lhe sonhei...
Felizmente que sei
Cantar sem pressa.
Que sei recomeçar...
Que sei que há uma promessa
No acto de cantar...
MIGUEL TORGA, Diário XII, Coimbra, 1995, p. 1248.
DA MEMÓRIA… JOSÉ LANÇA-COELHO
BEATLES VS. STONES
Agora que os Rolling Stones vêm a Portugal pela 3ª vez, e que o melhor álbum da música pop de todos tempos faz quarenta anos – refiro-me como é óbvio ao ‘Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band’ dos Beatles – deixem-me recordar alguns episódios da minha juventude, respeitantes a estes dois grupos.
Antes de mais, a rivalidade inventada pelos media entre os dois grupos. No nosso país, ainda antes do confronto Beatles vs. Stones, por volta de 1963, houve a rivalidade Beatles vs. Shadows. Estes últimos eram um grupo sobretudo instrumental, a que numa fase mais tardia se juntou como vocalista Cliff Richard, há muitos anos a viver em Albufeira, onde tem uma quinta que, actualmente, produz vinho. Não havia qualquer rivalidade entre eles, os membros dos dois grupos eram até muito amigos, partilhando a mesma discoteca em Londres, e no Algarve, a mesma casa, uma vez que, além de Cliff Richard, outros dois elementos do grupo tinham casa nas imediações de Albufeira, onde passavam despercebidos entre a população. Aliás, foi na casa de um deles que, Paul McCartney se alojou com a namorada da altura, a segunda vez que esteve em Portugal, e que coincidiu com a escrita da música ‘Yesterday’ que, consta do Guiness Book como sendo a canção que, a nível mundial, mais vezes foi cantada por outros intérpretes e mais tempo foi radiodifundida. Portanto, não havia qualquer tipo de rivalidade entre Beatles e Shadows pois, até a mesma casa partilhavam quando necessário.
Com os Stones, a rivalidade existente entre os dois expoentes da música pop britânica, passava-se mais ao nível dos fãs das duas bandas do que propriamente entre eles. Uma coisa que me surpreendeu, que tinha também embarcado nessa empolada rivalidade, foi aquando da 1ª emissão mundial de televisão, em que os Beatles apresentaram ao planeta Terra a música ‘All you need is Love’, ver entre os convidados que faziam o coro, Mick Jagger dos Stones, bem como na capa do melhor ‘LP’ da música Pop, o já citado ‘Sargent Pepper’s …’, um boneco de pano, em cuja camisola se pode ler ‘Wellcome The Rolling Stones’. Mais tarde, deparar-me-ia com outra parva rivalidade deste tipo na literatura portuguesa, entre Eça e Camilo, como se duas obras, subjectivas esteticamente como é qualquer obra de arte, pertencentes a estilos literários diferentes, respectivamente, Realismo e Romantismo, se pudessem comparar.
A melhor resposta a estes falsos antagonismos foi dada por Ringo Star, o baterista dos Beatles, quando, a propósito de dois modos de vestir que se confrontavam em Inglaterra, isto é, os ‘Mods’ que usavam um vestuário mais clássico e os ‘Rockers’ que vestiam mais desportivamente calças e blusões de ‘jeans’, lhe perguntaram, se ele era um ‘Mod’ ou um ‘Rocker’, e ele, fazendo a elisão das duas palavras, respondeu no seu estilo peculiar: «Sou um Mocker», que, em inglês, significa brincalhão!
Como Ringo desdramatizou estas falsas polémicas, também eu, beatliano assumido, o fiz, quando o programa ‘Em Órbita’ do Rádio Clube Português, divulgou o “(I can’t get no) Satisfaction” dos Stones. O início da música tinha qualquer coisa que, ainda hoje não tenho palavras para explicar, mas que me tocava na alma, aquecendo-a. Fui a correr à loja ‘Valentim de Carvalho’, na Rua Nova do Almada, ao Chiado e, comprei o disco. Era um ‘EP’, um vinil com 4 músicas que, mais tarde, me roubariam numa festa, e ouvi aquela música fascinante, no mínimo, vinte vezes seguidas, até a minha mãe, farta de ouvir sempre o mesmo, me chamou para jantar. Só mais tarde percebi a conotação sexual que emergia desta música.
DA MEMÓRIA … JOSÉ LANÇA-COELHO
VIVA A ‘BRIOSA’
A ‘Briosa’ é o nome pelo qual é conhecida a equipa de futebol da Associação Académica de Coimbra. Se soubessem quantas vezes esta equipa maravilhosa me safou, a mim e aos meus colegas de turma do 5º ano (o actual 9º) de apresentar os trabalhos de casa de Matemática, à segunda-feira…
Eu explico. Por alturas de 1965/66, tive um professor de Matemática, que fez com que, eu e todos os meus colegas, gostássemos dessa disciplina. Como? De uma maneira muito simples. Relacionando-se connosco, como se fosse um irmão mais velho, ou mesmo um pai, falando dos mesmos assuntos que nós, abrindo de par em par o livro da sua vida e, contando-nos episódios da sua vasta experiência.
O professor formara-se em Coimbra, vivera toda aquela vida sã das Repúblicas e tinha uma adoração, justificada, pela equipa da Académica. Digo justificada, porque naquele ano, a ‘Briosa’, tinha uma equipa fabulosa que, todos os domingos, dava aos 5 e aos 6 às outras equipas do Campeonato da 1ª Divisão ( a Bwinliga actual), ganhando mesmo aos três grandes. Até o Benfica de Eusébio, campeão de Portugal anos seguidos, apanhava grandes sustos no velho estádio do Calhabé.
Nos tempos actuais, pode parecer incrível a quem segue o futebol português, como posso afirmar isto de uma equipa que, todos os anos, luta para não descer de divisão. Porém, a verdade é que, em meados dos anos 60, a Briosa tinha uma equipa que, jogando no sistema 4.2.4., possuía dois ‘pontas de lança’ goleadores, um, o célebre Artur Jorge que, jogou e treinou o Benfica, e levou o Porto a campeão da Europa, o outro, Ernesto, que veio para o Sporting. Os extremos eram os célebres irmãos Campos, o Mário e o Victor que, actualmente são conceituados médicos na Lusa Atenas e, só não jogavam na Selecção Nacional por, nos mesmos lugares, jogarem os benfiquistas bicampeões da Europa, José Augusto e Simões.
Vivíamos o tempo cinzento da ditadura salazarista, com a televisão a preto e branco, de canal único, controlado pelo Poder, a dar ao domingo, depois de uma hora massacrante de fados, resumos de dois minutos, dos jogos mais importantes da jornada. Claro que, pelo que escrevi atrás, os jogos em que participava a ‘Briosa’ eram filmados, para mostrar os fabulosos golos que, aquela equipa maravilhosa, marcava todos os domingos. (Não posso precisar, mas creio que, desta equipa faziam ainda parte o Toni e o Rui Rodrigues que, depois se transferiram para o Benfica).
À segunda-feira de manhã, quando entrávamos na aula de Matemática, com os famigerados trabalhos de casa por fazer, havia sempre um de nós que, perguntava ao professor quando ele entrava na sala: «Sr. Dr., ontem viu o resumo do jogo da Académica?».
Não era preciso dizer mais nada, pois o mestre, com a sua pedagogia positiva, iria dar uma aula em que falaria da Vida, da Existência, vasto e profundo tema em que, também, se inseria a Matemática, mas onde estavam implícitas vertentes como o Desporto (as jogadas, os golos, os actuais e os antigos jogadores da Académica desde 1939, ano em que a ‘Briosa’ ganhou a primeira Taça de Portugal, tudo era comentado ao pormenor), a sã camaradagem das Repúblicas (as partidas que os estudantes faziam a colegas, professores, e a ‘civis’), a Literatura (foi ele que me deu a conhecer o In Illo Tempore de Trindade Coelho, com os seus episódios hilariantes, em especial, os do ‘Saraiva das Forças’, livro que, para mim, funcionou como uma iniciação àquilo que se aprende de bom no universo académico e universitário).
Por tudo isto, fiquei a gostar da Académica, único clube que, durante a crise de 69, tinha a coragem de jogar com um fumo de luto, mostrando o descontentamento do povo português relativamente à política de opressão e de terror, que se viviam naqueles tempos.