Quinta-feira, 30 de Outubro de 2008

RECENSÃO SOBRE "A CIDADELA BRANCA" DE ORHAN PAMUK

DA MEMÓRIA…JOSÉ LANÇA-COELHO

 

“A CIDADELA BRANCA”

 

            O livro Cidadela Branca de Orhan Pamuk (Editorial Presença), Prémio Nobel da Literatura 2006, é fundamentalmente sobre a alteridade, isto é, a relação entre o Eu e o Outro.

            Logo no início do livro, a seguinte passagem dá o mote, “O homem que entrou na sala era incrivelmente parecido comigo. Mas sou eu! Foi isto que pensei antes de mais nada. (…) olha bem, na verdade ai está o que tu deverias ter sido, deverias ter entrado assim por aquela porta, ter aqueles gestos, olhar assim o Outro, o Tu sentado neste aposento!” (p. 25) Este princípio lembra a obra do escritor argentino Jorge Luís Borges, sobretudo, no Livro da Areia, onde a alteridade é uma constante.

            A história que se conta na Cidadela Branca é a de um ocidental que se vê prisioneiro de um Mestre árabe, mas que, apesar da diferença de culturas, sente uma grande identificação com o Ele, como se constata aqui: “Antes de pousar a cabeça no cepo, fiquei muito surpreendido por ver errar uma forma humana entre as árvores, como se tivesse asas: era eu, tinha barba e avançava sem ruído, sem tocar com os pés no chão. (…)O Mestre encontrava-se na mansão e esperava-me no rés-do-chão. Só então percebi que era ele quem eu vislumbrara por entre as árvores do jardim.” (pp. 35-6)

            Lembrando a teoria platónica de que os deuses fizeram os humanos aos pares, tendo-os separado depois e que a grande realização da vida da pessoa, era encontrar o seu par, Pamuk aborda este assunto do seguinte modo: “os homens seriam criados aos pares? Tinham sido evocados casos muito extremos: gémeos que a própria mãe confundia, sósias assombrados quando se descobriam mutuamente, mas incapazes de se separarem a seguir, como que enfeitiçados, bandidos fazendo-se passar por inocentes.” (p. 42) Na relação Eu/Outro, surge um terceiro elemento que, neste caso, é incarnado pelo Paxá, que se interessa mais pelo narrador do que pelo Mestre, e cuja semelhança entre os dois primeiros o surpreendia: “(…) sentia que a nossa semelhança surpreendente o perturbava mais ainda do que a mim, e essa perturbação envaidecia-   -me. Nesse tempo, eu tinha a impressão de que essa semelhança era um mistério que o Mestre jamais procuraria decifrar e que me enchia de uma estranha coragem: por vezes, pensava que essa semelhança me protegeria, por si só, de todos os perigos enquanto o Mestre fosse vivo…” (p. 51)

            A relação com o Outro pode também desenvolver-se da 2ª para a 3ª pessoa, ou seja, do Outro que passa a Eu e do Outro que se converte em ‘outros’. Assim, o Mestre, “o que queria era conhecer as ideias dos «outros», das pessoas como eu (…). O que teriam pensado «os outros» no seu lugar?” (p. 61) Por outro lado, a alteridade suscita diversas questões sobre a identidade, como a seguinte: “e quando o Mestre me perguntou, como se se tratasse de uma questão muito banal: «Porque é que eu sou eu?», quis subitamente encorajá-lo e respondi-lhe.” (p. 65)

            Para o Eu se percepcionar deve ter uma postura semelhante a quem se contempla no espelho: “tal como o homem pode ver ao espelho a sua aparência exterior, deve poder observar pela reflexão o interior do seu espírito.”(p. 75)

            O final do livro é surpreendente do ponto de vista da alteridade, havendo uma surpreendente mutação entre o Eu e o Outro. Efectivamente, há uma surpreendente mudança de personalidade entre os dois personagens, reforçada com a troca de roupas que envergam. O Mestre árabe vai para o Ocidente, para a terra do seu escravo, acaba por casar com a mulher deste, enquanto o ocidental ocupa o seu lugar no Serralho, casa e faz uma vida perfeitamente integrada no islamismo.

            Por fim, a relação Eu/Outro, é reforçada com as conclusões de um derradeiro personagem que, conhecendo o Mestre no Ocidente, vem procurar o ex-ocidental à corte do Sultão. O viajante, primeiro, convence-se de que não existe qualquer relação entre os dois, porém, três horas depois, e após ler o livro escrito pelo ex-ocidental,  “parecia transtornado; compreendera tudo." (p. 181)

publicado por cempalavras às 23:49
link | favorito
Comentar:
De
  (moderado)
Nome

Url

Email

Guardar Dados?

Este Blog tem comentários moderados

(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Agosto 2018

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9
10
11

12
13
14
15
16
17
18

20
21
22
23
24
25

26
27
28
29
30
31


.posts recentes

. DIÁRIO IRREGULAR

. ...

. DIÁRIO IRREGULAR

. ORAÇÃO A DEUS, de VOLTAIR...

. ...

. ...

. ...

. ...

. ...

. ...

.arquivos

. Agosto 2018

. Outubro 2014

. Julho 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Setembro 2012

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Outubro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

. Março 2007

. Fevereiro 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

blogs SAPO

.subscrever feeds