DA MEMÓRIA…JOSÉ LANÇA-COELHO
“A CIDADELA BRANCA”
O livro Cidadela Branca de Orhan Pamuk (Editorial Presença), Prémio Nobel da Literatura 2006, é fundamentalmente sobre a alteridade, isto é, a relação entre o Eu e o Outro.
Logo no início do livro, a seguinte passagem dá o mote, “O homem que entrou na sala era incrivelmente parecido comigo. Mas sou eu! Foi isto que pensei antes de mais nada. (…) olha bem, na verdade ai está o que tu deverias ter sido, deverias ter entrado assim por aquela porta, ter aqueles gestos, olhar assim o Outro, o Tu sentado neste aposento!” (p. 25) Este princípio lembra a obra do escritor argentino Jorge Luís Borges, sobretudo, no Livro da Areia, onde a alteridade é uma constante.
A história que se conta na Cidadela Branca é a de um ocidental que se vê prisioneiro de um Mestre árabe, mas que, apesar da diferença de culturas, sente uma grande identificação com o Ele, como se constata aqui: “Antes de pousar a cabeça no cepo, fiquei muito surpreendido por ver errar uma forma humana entre as árvores, como se tivesse asas: era eu, tinha barba e avançava sem ruído, sem tocar com os pés no chão. (…)O Mestre encontrava-se na mansão e esperava-me no rés-do-chão. Só então percebi que era ele quem eu vislumbrara por entre as árvores do jardim.” (pp. 35-6)
Lembrando a teoria platónica de que os deuses fizeram os humanos aos pares, tendo-os separado depois e que a grande realização da vida da pessoa, era encontrar o seu par, Pamuk aborda este assunto do seguinte modo: “os homens seriam criados aos pares? Tinham sido evocados casos muito extremos: gémeos que a própria mãe confundia, sósias assombrados quando se descobriam mutuamente, mas incapazes de se separarem a seguir, como que enfeitiçados, bandidos fazendo-se passar por inocentes.” (p. 42) Na relação Eu/Outro, surge um terceiro elemento que, neste caso, é incarnado pelo Paxá, que se interessa mais pelo narrador do que pelo Mestre, e cuja semelhança entre os dois primeiros o surpreendia: “(…) sentia que a nossa semelhança surpreendente o perturbava mais ainda do que a mim, e essa perturbação envaidecia- -me. Nesse tempo, eu tinha a impressão de que essa semelhança era um mistério que o Mestre jamais procuraria decifrar e que me enchia de uma estranha coragem: por vezes, pensava que essa semelhança me protegeria, por si só, de todos os perigos enquanto o Mestre fosse vivo…” (p. 51)
A relação com o Outro pode também desenvolver-se da 2ª para a 3ª pessoa, ou seja, do Outro que passa a Eu e do Outro que se converte em ‘outros’. Assim, o Mestre, “o que queria era conhecer as ideias dos «outros», das pessoas como eu (…). O que teriam pensado «os outros» no seu lugar?” (p. 61) Por outro lado, a alteridade suscita diversas questões sobre a identidade, como a seguinte: “e quando o Mestre me perguntou, como se se tratasse de uma questão muito banal: «Porque é que eu sou eu?», quis subitamente encorajá-lo e respondi-lhe.” (p. 65)
Para o Eu se percepcionar deve ter uma postura semelhante a quem se contempla no espelho: “tal como o homem pode ver ao espelho a sua aparência exterior, deve poder observar pela reflexão o interior do seu espírito.”(p. 75)
O final do livro é surpreendente do ponto de vista da alteridade, havendo uma surpreendente mutação entre o Eu e o Outro. Efectivamente, há uma surpreendente mudança de personalidade entre os dois personagens, reforçada com a troca de roupas que envergam. O Mestre árabe vai para o Ocidente, para a terra do seu escravo, acaba por casar com a mulher deste, enquanto o ocidental ocupa o seu lugar no Serralho, casa e faz uma vida perfeitamente integrada no islamismo.
Por fim, a relação Eu/Outro, é reforçada com as conclusões de um derradeiro personagem que, conhecendo o Mestre no Ocidente, vem procurar o ex-ocidental à corte do Sultão. O viajante, primeiro, convence-se de que não existe qualquer relação entre os dois, porém, três horas depois, e após ler o livro escrito pelo ex-ocidental, “parecia transtornado; compreendera tudo." (p. 181)